Artigo: A privatização da Sabesp - Mitos e verdades

Por Augusto Massayuki Tsutiya, procurador federal aposentado, autor das obras ‘Direito Ambiental Quântico’ e ‘Curso de Direito da Seguridade Social’. Ex-docente da Unesp e ex-diretor da ADunesp-Central

O processo de privatização da Sabesp marcha a passos largos para a sua finalização. O governo do estado de São Paulo prevê que o referido processo deve ser finalizado em abril do presente ano. Todo certame primou pela falta de transparência e de forma acelerada e açodada, que impede a participação social, mormente da sociedade organizada.

É a tática utilizada pelo neoliberalismo, bem descrito na obra ‘A doutrina do choque’, da ativista canadense Naomi Klein, em que os atos de desestruturação de setores importantes são praticados sem que a sociedade tenha tempo para reagir. É o que acontece com a privatização da Sabesp.

Por certo, a autorização para privatização não teria obtido êxito se as informações sobre os interesses nada republicanos dos interessados fossem explicitados. Talvez a Assembleia Legislativa não autorizasse tal assalto legalizado ao bem público - a água - do povo paulista.

A despeito da batalha perdida contra a privatização da Sabesp na Alesp, a guerra não está totalmente perdida. Falta ainda o aval a ser dado pelos municípios, como São Paulo, através da Câmara Municipal, que previu a retomada dos serviços na hipótese da privatização da Sabesp. Sem a participação do município de São Paulo, que responde por cota significativa nos lucros da Sabesp, o investimento se torna menos atraente para o capital privado especulativo. Inviabilizando, portanto, a privatização nos moldes atuais.

Assim, o debate deverá prosseguir para barrar o presente processo de privatização da água em municípios que realizaram contratos nos moldes da capital do estado de São Paulo.

Daí a importância da participação da Unesp, que se encontra em todos os recantos desse Estado.

Todos os argumentos deste presente artigo foram extraídos de duas obras:

  1. Mercantilização da Água: Análise da Privatização do Saneamento em Terezina (PI): Editora Expressão Popular, de Dalila Alves Calisto, fruto de dissertação de Mestrado apresentada na Unesp;
  2. Privatização e Mercantilização da Água- Bem Comum sob Domínio Privado: Editora Dialética, de João Hélio Ferreira Pes e Micheli Capuano Irigaray.

A privatização da Sabesp e o consequente processo de mercantilização da água só puderam ser viabilizados pela aprovação da Lei nº 14.026/2020, no mandato do governo ultraliberal de extrema direita de Jair Bolsonaro. Tornam-se emblemáticas as participações dos seguintes personagens: o atual governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e do ex-ministro da Economia, Paulo Guedes.

A participação em especial deste último explica que o presente processo é totalmente desprovido de interesse público. Discípulo de Milton Friedman, doutorou-se em Economia na Universidade de Chicago, onde se formou uma geração de economistas (os Chicago’s boys) com a incumbência de implantar as ideias neoliberais, mormente na América Latina. Paulo Guedes é representante dessa escola. Iniciou-se como colaborador da ditadura de Pinochet. No Brasil, só teve oportunidade de colocar em prática as suas ideias com a ascensão do governo ultraliberal de Jair Bolsonaro. Um dos pontos do seu ideário é a privatização das estatais e o seu controle pelo capital privado. A privatização da Petrobrás e da Eletrobrás, cantada em verso e prosa como apanágio dos problemas brasileiros, faz parte do ideário deste projeto da Escola de Chicago, onde se doutorou.

Não se pode perder de vista a tática utilizada, tão bem descrita por Naomi Klein (“A Doutrina do Choque”), que prevê  que as ações devem ser executadas rapidamente, para que não haja tempo para reagir. É a marcha acelerada que está sendo imprimida no presente processo de privatização. Sem nem mesmo atentar para o fato de que pontos cruciais dos projetos de Lei que fundamentam a privatização, além de medidas administrativas  adotadas pelo governo estadual, já foram  questionadas junto ao STF. 

Como dizia Eduardo Galeano: “A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.”

É o que se pretende com o presente artigo.

O projeto de privatização da Sabesp faz parte deste ideário, que o governo Tarcísio quer realizar a todo custo. Argumenta que tem o aval do povo paulista, haja vista que consta do seu projeto de governo.

Há de se argumentar que a Lei 14.026, de 15/7/2020, que permitiu a mercantilização da água e posterior privatização da Sabesp, é na sua essência inconstitucional. O que já foi questionado ou pode ainda ser questionado junto ao STF. A questão central é definir se o direito à água é direito humano fundamental. Em resumo, se a água é bem público ou mercadoria, que pode ser negociada no mercado.

 

O direito à água como direito humano fundamental

Como veremos inicialmente, o direito à água trata-se de direito humano de 3ª geração, cujos argumentos podem ser melhor analisados na obra de minha autoria – ‘Direito Ambiental Quântico’, pela Lumen Juris, 2023 –, que por si só joga uma pá de cal nas pretensões do capital especulativo que dominou o governo ultraliberal do ex-presidente Jair Bolsonaro. O que será analisado a seguir.

Os fundamentos do Direito Constitucional brasileiro encontram-se positivados no art.225 da Constituição Federal, in verbis:

“Art.225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. “

O art.225, CF, foi inspirado na Declaração de Estocolmo-72, em que se cunhou o conceito de Desenvolvimento Ecologicamente Sustentável, extraído da matriz Ecodesenvolvimentista do economista romeno Nicholas Georgescu-Roengen, que fundou nova escola de pensamento econômico - Economia Ecológica.

Em relação ao meio ambiente a declaração de Estocolmo-72 dispõe no Princípio 1 que:

“O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. A este respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira são condenadas e devem ser eliminadas.”

Com isto, a Declaração de Estocolmo-72 enuncia que o direito ao meio ambiente de qualidade deve ser tratado como direito humano fundamental, na medida que dele depende a qualidade de um bem jurídico maior, qual seja, a vida humana.

O Estado Democrático de Direito, instituído pela Carta Magna de 1988, incorporou Tratados e Convenções Internacionais conferindo a todos os indivíduos proteção e garantias dos direitos fundamentais, que, por sua vez, decorrem do princípio da dignidade humana.

O que conduz à seguinte proposição emanada da Carta Magna: O homem tem direito à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as presentes e futuras gerações.    

Para se entender tais proposições inseridas na Carta Magna, há que se analisar o pensamento de Georgescu-Roengen (G-R).

TSUTIYA, A.M. (2023) faz uma síntese do modelo de G-R nos termos seguintes, p.57:

“Numa apertada síntese pode-se resumir o modelo desenvolvido por Georgescu-Roengen no seguinte esquema:

Na entrada (“input”) tem-se os insumos (matéria-prima e energia) e na saída(“output”) tem se os produtos (mercadorias e resíduos). Os resíduos são gerados na forma de efluentes, que por sua vez, podem ser classificados em sólidos, líquidos e gasosos. Os efluentes sólidos, popularmente denominados “lixo”, requerem áreas disponíveis para o seu acondicionamento, como os aterros sanitários; enquanto os efluentes líquidos, geralmente são despejados em cursos de água (córregos e rios) e os efluentes gasosos são despejados na atmosfera, cujos gases podem conter elementos nocivos à saúde e também ao meio ambiente, por exemplo, podem agravar o efeito “estufa”.

A questão ambiental relaciona-se com elementos do processo de produção. Na entrada (“input”) do sistema de produção tem-se a matéria prima e energia e na saída(“output”) produtos e resíduos.”

A matéria prima é extraída da natureza, os chamados recursos naturais. 

No dizer de MILARÉ, E. (2007):

“(...) De fato, em toda a superfície do globo terrestre encontramos elementos ou ambientes naturais, cuja composição e concentração variam conforme as diferentes regiões. Apesar dessas diferenças, são estreitamente relacionados e, exatamente, por isso, constituem ecossistemas. Tais componentes são: o ar, a água, o solo, a flora e a fauna.”

Destes elementos, a água é objeto do presente estudo. É elemento valiosíssimo, haja vista que sem ela não se pode falar nos outros elementos - a flora e a fauna e o solo tornam-se estéreis. A vida humana torna-se inviável. A falta de água em quantidade e qualidade impede que se viva com dignidade. Fere o princípio da dignidade humana, um dos pilares do direito humano fundamental.

Como vimos anteriormente, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, CF) é direito humano de 3ª geração. Assim, não se pode falar em equilíbrio ecológico sem o elemento água. Para tanto, há que se preservar o ecossistema.

Há de se concluir que não se pode falar em DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO sem a preservação do ecossistema em que o recurso hídrico se encontra inserido. O citado elemento (a água) deverá ser utilizado com parcimônia. O que não deverá ocorrer se este tornar-se ativo comercial. A exploração de minerais, como ferro em Minas Gerais e sal gema em Maceió-Alagoas, são exemplos que podem ser aplicados à água, se esta se tornar mercadoria. 

A preservação do precioso líquido só pode ser feita no âmbito do planejamento ambiental. Só o Estado pode cumprir tal tarefa. Portanto, a mercantilização da água deveria ser proibida e, como consequência, a privatização da Sabesp deverá ser afastada.

Assim, tendo em vista que o direito ao meio ambiente equilibrado compõe o rol dos direitos humanos fundamentais e a água é componente essencial ao equilíbrio ecossistêmico. Portanto, sem água não há direito ecologicamente equilibrado.

Nesta perspectiva, reflexamente o direito à água compõe o rol dos direitos humanos fundamentais

Por outro lado, segundo a doutrina constitucionalista, são características dos direitos humanos fundamentais: a inalienabilidade, imprescritibilidade, universalidade, inviolabilidade, efetividade, complementariedade, irrenunciabilidade, relatividade, historicidade.

Conclui-se, portanto, que a água não pode ser alienada. Não é mercadoria. Portanto, a privatização da Sabesp é inconstitucional. 

O Supremo Tribunal Federal adota tal entendimento. Para tal, colaciona-se artigo do Professor e Juiz Gabriel Wedy (conjur.com.br/2017-jan-14/ambiente-jurídico-decisões-stf-dever-fundamental-desenvolvimento-sustentável), acesso em 26/02/2024:

“O Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, reconheceu o direito ao meio ambiente como um direito fundamental. Nesse diapasão, também o meio ambiente foi considerado como bem jurídico merecedor de tutela constitucional, nos autos do RE 134.297-8/SP. No MS 22.164/DF, a corte ampliou o reconhecimento de características especiais do bem ambiental, à luz do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, em que estão previstos igualmente deveres fundamentais. (...)

 (...) Após essa breve explanação, vem a calhar lição do ministro Celso de Mello no sentido de que a incolumidade do meio ambiente “não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole econômica”, ainda mais se tiver presente que “a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a defesa do meio ambiente”. (...)

(...) O ministro Celso de Mello, no voto condutor do segundo leading case, asseverou que o direito ao meio ambiente constitui a representação objetiva da necessidade de se proteger valores associados ao princípio da solidariedade. Como consta no voto, é um direito fundamental de terceira geração:

[…] que assiste de modo subjetivamente indeterminado a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação que incumbe ao Estado e à própria coletividade de defendê-lo e preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam no seio da comunhão social os graves conflitos intergeracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõe o grupo social.”

Nesta perspectiva pode-se concluir que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se trata de direito humano fundamental. E consequência, o direito à água também o é.

Os argumentos para a privatização da Sabesp são basicamente três: (1) a ineficiência da prestação de serviço pela instituição pública, (2) barateamento das tarifas, (3) universalização dos serviços de saneamento, que só pode ser realizada pela iniciativa privada.

Trata-se de falácias que podem ser facilmente desmentidas. É o que se apresenta a seguir.

A ineficiência do Sabesp

Notícia extraída do Portal do Governo do Estado de São Paulo:     

“Pelo segundo ano seguido, a Sabesp foi vencedora do Prêmio Consumidor de Excelência em Serviços na categoria Relacionamento – Serviços Públicos Estaduais. O Prêmio, iniciativa do Grupo Padrão e da revista Consumidor Moderno, está em sua 13ª edição. A companhia foi premiada devido aos serviços prestados pela Central de Atendimento Telefônico da Sabesp no Interior e Litoral. Criada em 2009, a Central conta com mais de 350 profissionais qualificados e com o suporte tecnológico necessário para o trabalho. Por dia, cerca de oito mil ligações são atendidas. A meta da Central de Atendimento é atender todos os clientes de forma imediata: após o primeiro toque. Em 2011, em mais de 2,5 milhões de ligações, o objetivo foi atingido em 99% dos atendimentos.”

O argumento de deficiência do serviço prestado pela Sabesp foi contestado pelo voto contrário à sua privatização dado pela deputada estadual Delegada Graciele (PL), cuja base eleitoral localiza-se em Franca/SP, município atendido pela Sabesp. O referido município é referência mundial em saneamento básico e está entre as melhores cidades do país neste quesito. Segundo a parlamentar citada: “Em Franca, a Sabesp tem muito pouco a avançar.”  

A eficiência da Sabesp também é reconhecida internacionalmente. A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) foi uma das empresas vencedoras do prêmio “Cases de Sucesso em Água e Saneamento (ODS 6) 2019”, da Rede Brasil do Pacto Global, iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU), que reconhece os melhores casos da área no Brasil e qualifica o debate sobre o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6 – Água e Saneamento –, além de mostrar as oportunidades de negócio para o setor.

A Sabesp foi premiada pelo Programa Água Legal, que regulariza ligações de água em regiões de alta vulnerabilidade social, em duas categorias: “Água, Saneamento e Higiene (WASH) e Direitos Humanos” e “Eficiência hídrica em cadeias diretas de operações e suprimentos”.

“É uma premiação que reconhece o nobre trabalho realizado pela Sabesp ao levar o acesso à água de qualidade e cidadania às mais de 110 mil famílias beneficiadas, que antes viviam em situação de vulnerabilidade, sujeitas a doenças causadas pela água contaminada que corria nas instalações precárias”, salientou o governador João Doria, governador do estado à época da premiação. “Os prêmios também refletem a gestão eficiente dos recursos hídricos à medida que, com estruturas preparadas, o programa resulta em acentuada redução de perda em relação ao que se perdia nas tubulações improvisadas”, completou o governador à época.

Assim, demonstra-se a falácia de que a Sabesp é ineficiente na prestação do serviço de saneamento.

Barateamento das tarifas e universalização pela prestadora de serviço privado

É o “canto da sereia” que os defensores da privatização utilizam para justificar o seu intento.

PES, J.H.F & IRIGARAY, M.C(2023), em sua esclarecedora obra, vêm desmentir tal assertiva apresentada pelos privatistas. Para tanto, há que se colacionar algumas observações sobre o tema em apreço, à p.148:

“No entanto, a experiência histórica da participação da iniciativa privada nos serviços de saneamento, principalmente nos países em desenvolvimento, demonstra que não há significativo investimentos que possibilitem a ampliação dos serviços e a universalização do acesso à água e ao esgotamento sanitário. Nesse sentido, Leo Heller, Relator Especial sobre os Direitos Humanos à água  potável e ao Esgotamento Sanitário informa que os investimentos globais em água e esgotamento sanitário, durante a década de 1990, não foram carreadas para as regiões onde eram mais necessários, mas para países desenvolvidos, com a agravante de que “os prestadores privados muitas vezes dependem de fundos públicos frequentemente na forma de empréstimos com taxas de juros subsidiadas para ampliar o acesso ou melhorar a infraestrutura.”

Em relação ao Brasil, os autores citados apresentam o caso de Manaus, sob a atuação de empresa privada de saneamento, e fazem as seguintes observações:

“No Brasil, a privatização perpetrada em Manaus, no ano 2000, é a demonstração mais clara de que as grandes corporações privadas que atuam nesse setor fazem poucos investimentos, vale lembrar que após 20 anos de prestação privada dos serviços de saneamento a capital do Estado do Amazonas figura no ranking do saneamento de 2020, elaborado pelo Instituto Trata Brasil, na 96ª posição entre as 100 maiores cidades brasileiras. É necessário enfatizar que, após 20 anos de atuação da iniciativa privada nos serviços de saneamento, Manaus atendia, no ano de 2020, com serviços de esgotamento sanitário apenas 12,43% da população, ou percentual muito abaixo dos verificados em cidades que a prestação desse serviço é operada por empresas públicas.”  

Há que citar um caso relacionado com uma cidade média no Estado de São Paulo, Limeira, às p.152/153:

“A promessa de reduzir as tarifas com privatização, constante na justificativa de que a modernização do Marco Legal vai emanar melhor qualidade e menores preços dos serviços prestados à população, não corresponde com os desfechos de diversas privatizações desse setor no Brasil e no mundo. A BRK Ambiental, uma das grandes corporações de saneamento que atua no Brasil, assumiu os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no município de Limeira-SP, e, conforme dados do tarifário aplicado desde junho de 2013 até janeiro de 2021, divulgados na sua página na Internet sob o título Estrutura Tarifária – histórico 2013 a 2020, é possível verificar que o reajuste das tarifas residenciais tiveram um aumento de 103,53%, enquanto, nesse mesmo período a inflação, medida pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), foi de 50,40%.No mundo várias privatizações foram revertidas por conta dos aumentos de tarifas praticadas pelas empresas privadas. Essa é, também, a conclusão do Relatório Especial sobre direitos humanos à água potável e esgotamento sanitário que aponta “prestadores privados têm um interesse intrínseco em aumentar as receitas por meio de tarifa e taxas cobradas dos usuários e, muitas vezes, exercem uma influência significativa nos processos de decisão relacionados ao tema”

Quanto as tarifas, os autores (às p.154/155) apresentam quadros que possibilitam comparar quais são cobradas pelas empresas privadas e estatais:

tab1

Para efeito de comparação, analisa-se duas cidades do Estado de São Paulo: Taubaté/SP, com população de 317.915 habitantes, servida pela Sabesp, e Mauá/SP, com população de 477.555 habitantes, servida pela empresa privada BRK. Os quadros anteriores apresentam as tarifas: (1) Consumo de 24 metros cúbicos; (2) 12 metros cúbicos e (3) tarifa social.

Em Taubaté/SP, a SABESP pratica as seguintes tarifas: (1) R$268,08; (2) R$ 48,48 e (3) R$9,05. Em Mauá/SP, seguindo a mesma lógica anterior, as seguintes tarifas: R$404,40; R$54,48 e R$29,00, respectivamente.

A diferença é substancial, mormente em se tratando de tarifa social, a Sabesp cobra R$9,05, enquanto a empresa privada BRK, R$29,00. 

Pode-se argumentar que os serviços prestados pela empresa privada são mais caros porque são de melhor qualidade. PES, J.H.F & IRIGARAY, M.C. (2023) observam o que se segue às p.155/156:

“No que diz respeito à qualidade dos serviços, há vários casos em que a comparação da qualidade dos serviços prestados diretamente pela Administração Pública ou por empresas públicas e empresas privadas, desconstroem a narrativa de que os serviços públicos praticados por pessoas jurídicas da iniciativa privada são melhores do que os serviços prestados diretamente pelos órgãos ou empresas públicas. Nesse sentido é de grande validade o Relatório Especial sobre direitos humanos à água e esgotamento sanitário, aprovado na Assembleia Geral da ONU A/75/208, que enumera diversos casos em que foram detectados problemas na qualidade dos serviços de saneamento praticados por empresa privada. Um caso paradigmático da má qualidade dos serviços prestados por uma empresa privada é o de Pittsburgo, nos EUA.  

A quem interessa a privatização e a mercantilização da água?

Dalila Alves Calisto publicou a obra ‘Mercantilização da Água: Análise da Privatização do Saneamento de Teresina (PI), extraída da dissertação de mestrado junto à Unesp.

A citada autora apresenta resposta a indagação apresentada, nos termos seguintes, às p. 62/63: O papel do Estado é atuar na apresentação, assimilação e na consolidação de projetos que viabilizem o interesse do capital. No momento atual, na maior parte das vezes, uma lei, uma diretriz ou uma medida provisória não nasce das entranhas do Estado, mas sim das entranhas do capital. Este, nesse sentido, passa a dominar o Estado, fazendo-o criar regulamentos e leis que defendam o lucro, privatizem os ativos da nação, muitas vezes em detrimento do interesse da sociedade como um todo. Tanto tem sido assim que o BTG Pactual defendeu que, antes de dar início ao processo de privatização das companhias estaduais de saneamento, o governo brasileiro deveria garantir primeiro uma maior segurança jurídica às empresas privadas, mudando as regras e estabelecendo um novo modelo para o setor de saneamento que fosse baseado na atual organização do setor elétrico, pois, para o BTG, a atual regulação do setor de saneamento não é atrativa para o setor privado (Valor Econômico, 2017).

O estudo alegou que a grave situação fiscal em alguns estados brasileiros significava uma oportunidade bastante favorável para que o modelo de gestão do setor de saneamento fosse rediscutido no país. A recente Lei 14.026/20 (novo marco regulatório do saneamento) e o PL 495/17 (mercado de águas) são a via concreta reservas de águas naturais no país.

Na prática, o capital decide as áreas de negócios que quer se apropriar para extrair valor e faz o Estado abrir caminho legal e institucional para o alargamento de seus negócios. Esse modo de procedimento pode ser constatado em um evento   em julho de 2020 sobre saneamento, promovido pelo BNDES, banco estatal. Em uma discussão de “atração de investimentos”, com a presença de bancos privados, fundos de investimentos e associações de empresas privadas, os representantes reivindicavam “segurança jurídica”, “segurança regulatória” “previsibilidade”, reajustes tarifários, modelo de negócio sob controle privado, além de “melhorar as condições regulatórias aos investidores”, entre outros.

CALISTO, D.A. (2023) aponta que a negociação sobre os direitos de uso da água se realiza com o estudo feito pelo Banco Itaú, que criou o Instituto Escolhas para tratar da questão do direito das águas no Brasil. No dizer da autora citada, p.57:

Essa negociação sobre os direitos de uso da água se relaciona com o estudo realizado pelo Banco Itaú. Este apresenta proposta de precificação da água a partir da lógica da escassez, na qual os custos onerosos e as perdas econômicas sofridas pelas empresas poderão ser repassados aos consumidores finais de energia elétrica, resultando em uma nova cobrança nas contas de luz.” (sem grifo no original)

A participação do Banco Itaú e do BTG (instituição fundada por Paulo Guedes) na elaboração de leis que privilegiam o grande capital, notadamente transnacional, deveria ser motivo mais do que suficiente para inviabilizar estes projetos de desnacionalização. Não foi o que ocorreu, haja vista que compõe o ideário do governo de ultraliberal de Jair Bolsonaro, com a participação do Chicago’s boy Paulo Guedes, que pretendia entregar todos os recursos naturais, petróleo, eletricidade, florestas, água, dentre outros) à cobiça do capital transnacional, nos moldes denunciados por Eduardo Galeano em sua obra ‘Veias abertas da América Latina’.

Felizmente, este projeto foi derrotado nas urnas. Mas, infelizmente, para nós, paulistas, essa escola fez seguidores, que é o caso de Tarcísio de Freitas, que compôs a equipe do ex-presidente Jair Bolsonaro, e que pretende transferir o nosso ativo principal, a água, para o capital especulativo transnacional.

Do exposto por Dalila Alves Calisto, não resta dúvida de que o capital financeiro está por trás da privatização. Se a tarifa praticada pela Sabesp é cara, com a privatização ela vai ser cobrada segundo regras do mercado financeiro.

A autora realizou notável trabalho de pesquisa e descobriu quais agentes financeiros estão por trás das empresas privadas que atuam no Brasil e que, provavelmente, devem participar do certame licitatório da privatização da Sabesp.  

Em relação ao “modus operandi” do capital para auferir a lucratividade com investimentos em empresas privadas que devem ter o controle dos serviços de saneamento no Brasil, a autora, assim observa (p.45/46):

“Durante o evento (realizado pelo BNDES, já citado anteriormente), os bancos Credit Suisse, Miles Capital e Santander afirmaram que 80% do valor estimado para realização de investimentos na área de saneamento, que é de 700 bilhões de reais, serão viabilizados por meio da criação de dívidas. Um dos planos das empresas é gerar uma enorme dívida no setor, que pode chegar a meio trilhão de reais, e renderá altos lucros para os bancos por meio de juros altíssimos que serão cobrados nas tarifas de água. Para os bancos, a geração de dívidas será uma oportunidade de auferir lucros.” (sem grifos no original) 

Na perspectiva apontada, é falacioso o discurso governamental de que haverá redução nas tarifas de água e esgoto pela privatização. Os exemplos de privatização já realizados (Manaus, Limeira/SP) põem em xeque a promessa de universalização.  

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

CALISTO, Dalila Alves. Mercantilização da Água: Análise da Privatização do Saneamento de Teresina (PI). São Paulo: Editora Expressão Popular, 2023.

IRIGARAY, Micheli Capuano & PES, João Hélio Ferreira. Privatização e Mercantilização da Água-Bem Comum sob Domínio Privado. São Paulo: Editora Dialética, 2023.

MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente - A Gestão Ambiental em foco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

TSUTIYA, Augusto Massayuki. Direito Ambiental Quântico - Fundamentos do Direito Constitucional Ambiental. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023.