Coronavírus: A necessidade de nos mantermos lúcidos em épocas de incertezas e enclausuramento

Coronavírus: A necessidade de nos mantermos lúcidos em épocas de incertezas e enclausuramento

Por Cláudia Prioste, psicóloga e docente da Unesp/Araraquara

A rápida propagação e a letalidade do vírus Covid-19 têm aumentado as incertezas sobre nossas vidas. Incertezas sobre a economia mundial, sobre o curso do capitalismo, da globalização e o futuro das nações que se acreditavam inabaláveis. A pandemia lançou dúvidas sobre a capacidade das ciências em oferecer respostas rápidas ao ataque silencioso e progressivo de um microrganismo com gigantesco potencial reprodutivo e destrutivo, sobretudo devido aos precários investimentos que o meio científico tem recebido por parte dos dirigentes políticos. 

A pandemia provocou questionamentos sobre as desigualdades de renda e a política selvagem de privatizações dos bens públicos, que contribuem para manutenção e o crescimento de oligopólios financeiros em detrimento das garantias de segurança das bases sociais e científicas necessárias à preservação da vida.

A doença que se propaga de maneira insidiosa e exponencial lançou também incertezas sobre nosso estilo de viver, de consumir, de se divertir, de se relacionar e de educar as novas gerações. Fechou escolas e universidades, o que aumentará a desigualdade entre os que têm acesso às tecnologias digitais e aqueles que são privados de informações consistentes e educativas.

O vírus interrompeu o trânsito turístico e comercial de pessoas no mundo, impossibilitou bruscamente algumas satisfações narcísicas tão consolidadas nas últimas décadas. Nossas antigas prioridades entraram em quarentena.

Nossos laços sociais e a capacidade de nos mantermos lúcidos em meio ao caos progressivo passaram a ser fortemente testados. Além do vírus, temos os delírios paranoicos, a depressão e a ansiedade rondando nossos espaços intersubjetivos, hiperinflacionados pelas redes sociais e pelas mídias. Como nos mantermos lúcidos nesse contexto?

Zigmund Bauman, na introdução do livro “A individualidade numa época de incertezas”, enfatiza que “a impossibilidade da certeza, assim como de prever o futuro em termos não probabilísticos, não é um efeito da insuficiência de conhecimento, mas da excessiva e sobretudo ilimitada complexidade do Universo”. Viver em épocas de muitas incertezas e complexidade contribui para aumentar estados paranoicos e de desânimo. Contribui também para o ancoradouro em pensamentos mágicos e onipotentes.

Estamos iniciando um período que exige mudanças significativas de nossos hábitos, valores e estilo de vida. A contenção química do vírus ainda está um tanto distante. A letalidade do vírus assusta e a única forma de contermos a progressão da doença é por mudanças comportamentais, com ênfase no distanciamento social.  No entanto, tenho notado alguns obstáculos a essas mudanças.

As pessoas têm oscilado entre as previsões catastróficas e as crenças onipotentes. Os delírios coletivos e as “fake news” se propagam tão rápido quanto o vírus. As onipotências também.

A paranoia, grosso modo, pode ser definida como pensamento obsessivo de perseguição. Como não mais podemos saber quem está infectado e pode nos transmitir a doença, é possível que se acentuem as defesas persecutórias, cujos desdobramentos podem ser o medo do outro e reações, de antemão, agressivas. Os ataques a enfermeiros nos transportes públicos de São Paulo são indicativos dessa insanidade.

Freud, em sua análise sobre a paranoia, destacava a associação com os delírios onipotentes, ou seja, diante de nossa extrema fragilidade, algumas pessoas podem recorrer à ilusão infantil de serem fortes e invencíveis. Podem também projetar a onipotência nos deuses ou líderes religiosos. O risco é de que essas pessoas sabotem as orientações de isolamento e contribuam para a propagação do vírus.  Além disso, temos o vírus da ignorância de alguns dirigentes políticos.

A angústia e os estados depressivos podem aumentar no período de confinamento. Freud, no texto “Inibição, sintoma e angústia”, define a angústia como uma reação a um estado de perigo, revelando-se como um produto da condição humana de desamparo. A angústia tem uma função protetora de nos preparar para nos defendermos de um perigo. Porém, ela também pode ter um efeito paralisante ou excitatório. Explico: os estados ansiosos causam uma excitação viciante, por isso, algumas pessoas tendem a buscar incessantemente por notícias das tragédias da epidemia, mantendo-se assim em constante estado de alerta. O aparelho psíquico começa a funcionar em alerta, o que produz uma sobrecarga intensa, podendo levar à insônia e aos estados depressivos e paralisantes.

Esses estados depressivos se caracterizam por um desinvestimento em si, nas relações, nos estudos e no trabalho.  A tristeza, o desânimo e a falta de vontade de fazer as coisas podem se intensificar. Não estou aqui falando de depressão como transtorno psíquico, mas de pessoas saudáveis que podem entrar em estados depressivos. Precisamos estar atentos.

Não temos fórmulas mágicas para lidar com essa nova situação. Alguns casos podem necessitar de profissionais da saúde mental, porém, se torna cada vez mais necessária uma revisão de nossas prioridades de vida. Reflexões sobre nossos valores, sobre como conduzimos nossa rotina, nosso cotidiano e, mais do que isso, precisamos reacender a solidariedade, principalmente com aqueles que estão em condições mais vulneráveis: os idosos e as pessoas em situação de pobreza e miséria. Além disso, precisamos proteger as crianças que estão sendo privadas de seus espaços de aprendizagem e sociabilidade, ao mesmo tempo em que têm sido expostas a uma avalanche de medos.

A melhor forma de manter nossa lucidez e sensatez é nos cuidando e cuidando de quem está próximo, principalmente das pessoas mais vulneráveis do que nós. Precisamos nos esforçar para manter uma rotina de trabalho, de atividades físicas, de estudo, de leituras de poesias, romances, músicas, danças, além de conversas com as pessoas que nos fazem bem. A pandemia não deve nos impedir de manter uma proximidade solidária e fraterna. Por fim, destaco a importância de acender a chama de nossas lutas políticas em defesa da ciência e da educação.